sábado, 26 de outubro de 2013

Diversão e arte - sabadão em Brasília

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Grupo 3 Encena Obra sobre Assédio Moral

Dirigida por Grace Passô, com Débora Falabella e Yara de Novaes no elenco,  Contrações, do inglês Mike Bartlett, estréia dia 19 de outubro, no CCBB. A peça tem sessões aos sábados, às 17h30 e 20h; aos domingos, 18h, e às segundas, 20h.

O quarto espetáculo do Grupo 3 de Teatro constitui prato cheio para os criadores habituados a transformar tudo em ação: a palavra, o gesto, o espaço, a luz, a sonoridade e tudo mais que estimule o jogo de cena. Desde o ventre de seu nome, Contrações, a peça do inglês Mike Bartlett já sinaliza as potencialidades físicas e faladas. Os diálogos enxutos, a codependência de quem comanda e é comandado, o rumor do assédio moral e a circunscrição de um ambiente corporativo são algumas das possibilidades formais e temáticas operadas pela diretora Grace Passô e pelas atrizes Débora Falabella e Yara de Novaes.
Nos tempos atuais, em que o conceito de gestão transborda para o campo pessoal – a vida a ser administrada por “você sociedade anônima” –, Bartlett é cirúrgico em seu diagnóstico e prescrição dramática. Para demonstrar o processo transformador do sujeito e de sua consciência em coisa, o autor radica a concisão de linguagem. O verbo é desferido entre quatro paredes como um sistema de agressões reiteradas para anular a subjetividade alheia. Velha estratégia dos regimes de opressão cada vez mais aplicada à nova ordem mercantil das relações.
É nesse lugar que a gerente de uma grande corporação vai manipular uma funcionária, confundindo deliberadamente aspectos profissionais e privados. Logo na primeira vez em que Emma pisa a sala e abre uma série de conversas informais com a gestora inominada, ela é instruída a ler uma das normas do contrato trabalhista que assinara. Aquela em que são vedados aos funcionários se apaixonar ou manter relações sexuais, curto e grosso assim, sob o álibi de evitar injustiças ou discriminações.
Bartlett, de 33 anos, não abre mão da ironia e do humor, independente do grau de violência a que Emma, interpretada por Débora Falabella, é submetida segundo a lógica cruel daquela que a provoca, na atuação de Yara de Novaes. A desconstrução cumulativa do sujeito é avassaladora a cada reunião a sós. Com medo de perder o emprego, Emma submete-se às perversões de quem a interpela e invade sua intimidade. O açodamento vai às últimas consequências, feito o impiedoso retrato da condição humana composto por George Orwell no romance 1984.
No seu primeiro texto encenado, My Child (2007), Bartlett abordou as agruras de um pai recém-divorciado em busca de acesso ao filho. Em Cock (2009), a sexualidade masculina é colocada em xeque após uma separação. Invariavelmente, ele perpassa a instância do íntimo e tem espaço cativo entre as produções do Royal Court Theatre, renomado centro internacional de pesquisa, formação e fomento a novos autores.
Em oito anos de formação, o Grupo 3 consolida uma identidade coerente ao desvelar tensões em vez de recorrer a procedimentos criativos convencionais na hora de contar uma história no palco. Seus trabalhos convocam o espectador à cumplicidade na jornada pelo desconhecido, estranho, deslocado. Basta citar a disponibilidade em circular pelo interior paulista, em abril passado, expondo o processo criativo de Contrações, ora estreando temporada no CCBB-SP. Cada sessão foi seguida de escuta do público sobre os experimentos tateados pela equipe, contribuições valiosas para efetivar as escolhas estéticas e poéticas.
 
Grace Passô
Convidada a encenar a peça, a também dramaturga e atriz mineira Grace Passô é conhecida pela inventividade ao dosar contundência e delicadeza. Registros que também imprime enquanto escritura cênica, para além do texto, não importando os pendores absurdos ou grotescos nele contidos. Na primeira parceria com o Grupo 3 de Teatro, ela encontra interlocutores com fôlego para extrair dos subtextos da obra inglesa outros paradigmas sobre os sentidos da arte. Procura evitar, por exemplo, leituras moralizantes ou maniqueístas, deixando o espectador livre em suas percepções.
De fato, o caráter da obra aberta e capaz de discutir o próprio campo do fazer teatral, suas razões, superações e limites, é um dos traços marcantes no pensamento de Grace Passô. Vide a segurança com que conduziu o Grupo Lume em Os Bem-Intencionados (2012), uma simbiose de gerações. E a pesquisa continuada desenvolvida junto ao Grupo Espanca!, de Belo Horizonte, que deu frutos como Por Elise (2005), Prêmio Shell de Teatro de melhor autora em São Paulo; Marcha para Zenturo (2010), parceria com o Grupo XIX de Teatro; e O Líquido Tátil (2012), direção do também autor argentino Daniel Veronese, referência da cena portenha contemporânea.
Em recente mostra de repertório realizada no Teatro Sérgio Cardoso, o Grupo 3 compartilhou a memória dos espetáculos de que é feito. O público viu ou reviu A serpente (2005), de Nelson Rodrigues, dirigido por Yara de Novaes; O Continente Negro (2007), do chileno Marco Antonio de La Parra, por Aderbal Freire-Filho; e O Amor e Outros Estranhos Rumores – 3 Histórias de Murilo Rubião (2010), também por Yara de Novaes.
Débora Falabella e Yara de Novaes, portanto, são criadoras curtidas nessa entrega incondicional ao ofício. Princípio que está na gênese do núcleo cofundado ainda pelo produtor Gabriel Fontes Paiva. Tal filosofia de trabalho é tributária da manutenção dos lanços com colaboradores como o cenógrafo e figurinista André Cortez, o músico Morris Picciotto, que assina a trilha original, e a tradutora Silvia Gomez, que verteu Bartlett para a oralidade do português. Todos – e mais o desenho de luz da convidada Alessandra Domingues – a bordo dessas Contrações, singrando mares de insensatez e plausibilidades que dizem muito sobre nossa época.
Valmir Santos
Jornalista, crítico teatral e editor do site Teatrojornal – Leituras de Cena

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